O real e o irreal em literatura

“( …) O real e o irreal na literatura são (…), reflexos de duas atitudes em face da vida, da sociedade. O escritor é um intérprete das inquietações (de conformismo ou de inconformismo) de uma determinada época. Ele próprio também tem uma posição social a defender e, por conseguinte, também o assediam essas mesmas inquietações.
Ele não é um simples conductor automático da essência dos factos que o rodeiam. É, sim, uma materia sensível com um processo especial de gravação. O que vê, o que ouve, o que vive, canaliza-o para a obra de arte com uma consciente intenção, melhor, arrumando esses factos com uma determinada ordem. Há um critério da parte do artista, um critério de interpretação e de resolução. Esse critério não é alheio a forças exteriores, como sejam o ordenamento económico da sociedade e a situação de que o próprio escritor goza nessa mesma sociedade. (…)
Diremos ainda que o real em literatura, hoje, tem todas as formas que se possam imaginar. É belo e é feio, é rude e é suave, é magnífico, e é mesquinho. Mas é também demolidor e constructor a um tempo, porque vem da vida e parte para a vida. Nasce do homem, das suas miserias e das suas alegrias, e tende para o homem, para tornar mais sãs as suas alegrias e menores as suas tristezas. Nesse processo de reprodução, uma só coisa se exige do escritor: que seja verdadeiro, que nos diga da vida o que a vida unicamente contém. Quanto às soluções, elas estão na mecanica das coisas, resultam dos próprios vícios e das próprias forças da Humanidade. Não é necessário gritá-las, que elas estão em vós, e em nós, e em todos, e em tudo. Elas são também a própria vida.
Há uma frase de D. Francisco Giner de los Rios que gostariamos de citar em espanhol: «La vida no es alegre ni trite, sino sencillamente seria». Pois o realismo moderno tem toda a seriedade da vida. Ele é nada menos que o próprio homem em luta com a natureza, em luta consigo próprio. Mas é ainda mais qualquer coisa. É o espelho do presente, sim, mas também a imagem do futuro, a pedra primeira para a construção do futuro. E aí está toda a grandeza da moderna literatura. Estão o ponto de partida e a meta final da luta entre o real e o irreal. Estão, além disso, todas as inquietações e todas as esperanças de uma humanidade que procura curar-se de uma intoxicação de idealismo.
O real e o irreal em literatura são a nossa época.
Mas na literatura de amanhã só o real terá lugar. Porque ele hoje é já o próprio amanhã.”
Jorge Domingues - "O real e o irreal em literatura", in: O Diabo, 169, Lisboa, 1937

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